18.11.07

Terra Firme

PRIMEIRO ACTO

Cozinha de casa de lavoura. Lareira, mesa, louceiro, preguiçeiro e bancos pequenos. Porta à esquerda para o pátio, de que se vê parte. Outra á direita, que comunica com o interior da casa. Quando o pano sobe, estão quatro pessoas em cena, dois homens e duas mulheres, sentadas à lareira, a conversar. Uma das mulheres faz meia. Luar lá fora.

CENA I

TIO ANTÓNIO
(erguendo-se)

Pois não vendo, não. Lá que te fazia arranjo, concordo. Mas não vendo. É onde semeio as batatas no cedo, tem a costeira que dá mato, fica-me ali à mão...

TIO JOAQUIM
(erguendo-se também)

Não estejas a desconversar! Fala-me com a franqueza com que te falo! Então as Bajancas ficam-te à mão? Diz que não te interessa o negócio, e acabou-se. Agora que a leira te fica à mão !... Nos calcanhares do mundo! A bem dizer no termo do povo! A mim convinha-me, por ter o migalho ao pé ... Juntava tudo ...

TIO ANTÒNIO
(irónico)

Por esse andar, também eu te podia comprar o teu bocado e aumentar o meu ... Se é para juntar ...

TIA GUILERMINA

Eu, terras ... estou mais farta ... por minha vontade, fazia-se a escritura amanhã ...

TIO ANTÓNIO
(irritado)

Pois se é da tua vontade, não é da minha! Enquanto eu viver, não largo um palmo a ninguém.

Foi este belo texto de Miguel Torga que, ontem, o grupo Filandorra do Nordeste levou a cena no magnífico teatro de Vila Real. Apesar de uma tão fria noite, foram momentos aconchegantes que se passaram ali, junto do lar daquela família transmontana, imaginado-nos sentados no escano com enorme vontade de ali estar. Mal chegamos a casa, entusiasmadíssimo, o Pedro quase que suplicou:
- Pá, quero ler o livro. ( ... e já o leva meio vindimado!)

Obs.: A peça "Terra Firme", drama em três actos, foi a obra escolhida pelo Filandorra para assinalar o centenário do nascimento de Miguel Torga, cuja estreia ocorreu na terra natal do escritor e percorreu 11 concelhos da região do Douro ao longo do ano. "Terra Firme" conta a história de Ti António, um velho camponês agarrado à terra, que sofre e desespera por o filho ter escolhido a vida de marinheiro e andar, há 20 anos, no mar alto, sem jamais ter voltado à terra natal.
monge

4 comentários:

avelaneiraflorida disse...

Amigo Monge,

que bela maneira de homenagear o "meu" Torga!!!!
Adoraria ter estado presente!!!

"BRIGADOS" pela partilha!!!!

BJks

monge disse...

viva monge!
Parece que estou a ouvir as nossas gentes!...Lembrou-me também aquele poema muito bonito e triste do gonçalves Crespo "a venda dos bois", em que um camponês se viu obrigado a vender os bois e pareceu-lhe ouvi-los chorar, enquanto ele, pobre velho de coração dilacerado, os "junguia" a custo pela ùltima vez!...

sentido abraço
eremita

monge disse...

Amiga avelaneiraflorida

mesmo com sala cheia, acredita que ainda lá estavam muitos mais ... também eu gostaria que todas as pessoas presenciar estas manifestções telúricas do "nosso" Torga.

Partilhar sempre, bj

monge

monge disse...

Amigo monge

também tu lá estiveste e acredita que ouviste as nossas gentes ... pelo menos a figura e a interpretação do Ti António, não muda em nada a imagem que ainda retemos dos Ti Antónios das nossas infâncias e de todos uns trejeitos e expressões rigirasamente genuínos.

" O universal é o local sem paredes" Miguel Torga

transmontano abraço

monge