16.11.07

CONTOS DO NASCER DA TERRA
"Era uma vez uma menina que pediu ao pai que fosse apanhar a lua para ela. O pai meteu-se num barco e remou para longe. Quando chegou à dobra do horizonte pôs-se em bicos de sonhos para alcançar as alturas. Segurou o astro com as duas mãos, com mil cuidados. O planeta era leve como uma baloa.Quando ele puxou para arrancar aquele fruto do céu se escutou um rebentamundo. A lua se cintilhaçou em mil estrelinhações. O mar se encrispou, o barco se afundou, engolido num abismo. A praia se cobriu de prata, flocos de luar cobriram o areal. A menina se pôs a andar ao contrário em todas as direcções, para lá e para além, recolhendo os pedaços lunares. Olhou o horizonte e chamou:
—Pai!
Então, se abriu uma fenda funda, a ferida de nascença da própria terra. Dos lábios dessa cicatriz se derramava sangue. A água sangrava? O sangue se aguava? E foi assim. Essa foi uma vez."

Já tinha lido sobre Mia Couto, mas nunca tinha lido Mia Couto. E, simplesmente, fiquei encantado. Bem que me avisaram quando me ofereceram o livro: - olha que é um autor com uma linguagem muito fértil; um inventor de palavras e de termos. E realmente, ao longo da leitura, os seus neologismos não cessam de nos surpreender, se não vejamos: ... letrinhei, ... desentretanto; ... devagaroso; ... tudo irresultou; ... ela se tinha imensado. Ou então expressões: ... metida em vara de sete camisas, ... promete mundos sem fundos ... às duas por muitas, ... tudo a pratos lavados, ... .

O que não me disseram foi que, parece ser um autor que se preocupa em interpretar a verdadeira natureza das coisas, para as quais consegue arranjar definições de original beleza.

"Necessitamos não do nascer do Sol. Carecemos do nascer da Terra."

Em todo o mundo, os pobres têm essa estranha mania de morrerem cedo”.
"A sede se inventa é para a miragem das águas."
"O futuro é um país que não se pode visitar."
"Nem tudo se explica, para que se compreenda melhor. Para ver a gente necessita transparência, mas se tudo fosse transparente todos seríamos cegos."
"A vida não tem metades é sempre inteira."
"... a morte é o fim sem finalidade."
"Eu quero a paz de pertencer a um só lugar, a tranquilidade de não dividir memórias. Ser todo de uma vida."
"A memória ... me faz crescer cheiros nos olhos."
"Os boatos viajam à velocidade do escuro."
"Se acredito, eu? Sei lá. Minha crença é um pássaro. Sou crente só em chuva que cai e esvai sem deixar prova."
"Careço de um lugar para esperar, sem tempo, sem mim."
"A punição do sonho é aquela que mais dói."
"O que o homem tem do pássaro é inveja. Saudade é o que o peixe sente da nuvem."
"Uma criança é um homem que se dá licença de voar."
"O cansaço é um modo do corpo ensinar a cabeça."
"A vida é um por enquanto no que há-de vir."
"Ingrata é a morte que não agradece a ninguém."
"Na Natureza ninguém se perde, tudo inventa outra forma."
"A água corre com saudade do que nunca teve: o total, imenso mar."
"A tristeza é uma janela que se abre nas traseiras do mundo."
"Abrigo maior não encontrei senão nas paragens da memória."
"Não há medo maior que não se entender humana a voz de outra humana pessoa."


E foi assim.

monge

4 comentários:

monge disse...

Olà amigo e companheiro,
que maravilha este Mia Couto! Obrigado por este momento de poesia. Deste (re)encontro tão agradàvel com o sentir das coisas simples e fundamentais que, à força de andadarem arredades das nossas preocupações quotidianas de importância muito relativa, quase nos parecem excecionais. Ah, temos tanto que desaprender!...

Aquele abraço
eremita

avelaneiraflorida disse...

Amigo Monge,

Um dos livros de MIA COUTO QUE MAIS ME TOCOU!!!!
Todo ele é um verdadeiro hino à Natureza, à Vida , ao Ser Humano!!!!

Quanto à escrita, é por demais excelente!!!!
a poesia e a prosa entrelaçam-se nos "neologismos" ,por ele criados ,se assim lhe podemos chamar!!!!
Está sempre muito perto de mim!!!!
E recomendo-o VIVAMENTE!
BOAS LEITURAS!!!!!
BOM RESTO DE FIM DE SEMANA!!!
BJKs

monge disse...

Amigo e companheiro eremita

é uma prova irrefutável de que, as palavras, na sua combinação perfeita, conseguem produzir efeitos que nos proporcionam momentos de inimaginável ternura e Mia Couto, de uma forma simples é caapz de naturezalizar a perene condição humana.

abraço do tamanho da terra

monge

monge disse...

Olá amiga avelaneira

Sem sombra de dúvidas que este livro é um verdadeiro hino à Natureza, à Vida , ao Ser Humano!!!
É uma bonita lição em como precisamos de simplificar a nossa maneira de sentir e deixar que a vida, em todas as suas manifestações, nos entre poros adentro e se espalhe como seiva rivogorante.

bom início de semana, bj

monge