19.12.07

O Garrinchas

"De sacola e bordão, o velho Garrinchas fazia os possíveis por se aproximar da terra. A necessidade levara-o longe de mais. Pedir é um triste oficio, e pedir em Lourosa, pior. Ninguém dá nada. Tenha paciência, Deus o favoreça, hoje não pode ser - e beba um desgraçado água dos ribeiros e coma pedras! Por isso, que remédio senão alargar os horizontes, e estender a mão à caridade de gente desconhecida, que ao menos se envergonhasse de negar uma côdea a um homem a meio do padre-nosso. Sim, rezava quando batia a qualquer porta. Gostavam... Lá se tinha fé na oração, isso era outra conversa. As boas acções é que nos salvam. Não se entra no céu com ladainhas, tirassem daí o sentido. A coisa fia mais fino! Mas, enfim...
Segue-se que só dando ao canelo por muito largo conseguia viver.E ali vinha de mais uma dessas romarias, bem escusadas se o mundo fosse doutra maneira. Muito embora trouxesse dez réis no bolso e o bornal cheio, o certo é que já lhe custava arrastar as pernas.
Derreadinho! Podia, realmente, ter ficado em Loivos. Dormia, e no dia seguinte, de manhãzinha, punha-se a caminho. Mas quê! Metera-se-lhe em cabeça consoar à manjedoira nativa... E a verdade é que nem casa nem família o esperavam.
Todo o calor possível seria o do forno do povo, permanentemente escancarado à pobreza. Em todo o caso sempre era passar a noite santa debaixo de telhas conhecidas, na modorra dum borralho de estevas e giestas familiares, a respirar o perfume a pão fresco da última cozedura... Essa regalia ao menos dava-a Lourosa aos desamparados. Encher-lhes a barriga, não. Agora albergar o corpo e matar o sono naquele santuário colectivo da fome, podiam.
O problema estava em chegar lá. O raio da serra nunca mais acabava, e sentia-se cansado. Setenta e cinco anos, parecendo que não, é um grande carrego. Ainda por cima atrasara-se na jornada em Feitais. Dera uma volta ao lugarejo, as bichas pegaram, a coisa começou a render, e esqueceu-se das horas.
Quando foi a dar conta, passava das quatro. E, como anoitecia cedo, não havia outro remédio sento ir agora a mata-cavalos, a correr contra o tempo e contra a idade, com o coração a refilar. Aflito, batia-lhe na taipa do peito, a pedir misericórdia. Tivesse paciência. O remédio era andar para diante.
E o pior de tudo é que começava a nevar! Pela amostra, parecia coisa ligeira. Mas vamos ao caso que pegasse a valer?
Bem, um pobre já está acostumado a quantas tropelias a sorte quer. Ele então, se fosse a queixar-se! Cada desconsideração do destino! Valia-lhe o bom feitio. Viesse o que viesse, recebia tudo com a mesma cara. Aborrecer-se para quê?! Não lucrava nada! Chamavam-lhe filósofo... Areias, queriam dizer. Importava-lhe lá.
E caía, o algodão em rama! Caía, sim senhor! Bonito! Felizmente que a Senhora dos Prazeres ficava perto. Se a brincadeira continuasse, olha, dormia no cabido! O que é, sendo assim, adeus noite de Natal em Lourosa...
Apressou mais o passo, fez ouvidos de mercador à fadiga, e foi rompendo a chuva de pétalas. Rico panorama!Com patorras de elefante e branco como um moleiro, ao cabo de meia hora de caminho chegou ao adro da ermida. À volta não se enxergava um palmo sequer de chão descoberto. Caiados, os penedos lembravam penitentes.Não havia que ver: nem pensar noutro pouso. E dar graças!
Entrou no alpendre, encostou o pau à parede, arreou o alforge, sacudiu-se, e só então reparou que a porta da capela estava apenas encostada. Ou fora esquecimento ou alguma alma pecadora forçara a fechadura.
Vá lá! Do mal o menos. Em caso de necessidade, podia entrar e abrigar-se dentro. Assunto a resolver na ocasião devida... Para já, a fogueira que ia fazer tinha de ser cá fora. O diabo era arranjar lenha.
Saiu, apanhou um braçado de urgueiras, voltou, e tentou acendê-las. Mas estavam verdes e húmidas, e o lume, depois dum clarão animador, apagou-se. Recomeçou três vezes, e três vezes o mesmo insucesso. Mau! Gastar os fósforos todos, é que não.
Num começo de angústia, porque o ar da montanha tolhia e começava a escurecer, lembrou-se de ir à sacristia ver se encontrava um bocado de papel.
Descobriu, realmente, um jornal a forrar um gavetão, e já mais sossegado, e também agradecido ao Céu por aquela ajuda, olhou o altar.
Quase invisível na penumbra, com o divino filho ao colo, a Mãe de Deus parecia sorrir-lhe.
- Boas festas! - desejou-lhe então, a sorrir também.
Contente daquela palavra que lhe saíra da boca sem saber como, voltou-se e deu com o andor da procissão arrumado a um canto. E teve outra ideia.Era um abuso, evidentemente, mas paciência. Lá morrer de frio, isso vírgula! Ia escavacar o arcanho. Olarila!Na altura da romaria que arranjassem um novo.
Daí a pouco, envolvido pela negrura da noite, o coberto, não desfazendo, desafiava qualquer lareira afortunada. A madeira seca do palanquim ardia que regalava; só de se cheirar o naco de presunto que recebera em Carvas crescia água na boca; que mais faltava?
Enxuto e quente, o Garrinchas dispôs-se então a cear. Tirou a navalha do bolso, cortou um pedaço de broa e uma fatia de febra, e sentou-se. Mas antes da primeira bocada a alma deu-lhe um rebate e, por descargo de consciência, ergueu-se e chegou-se à entrada da capela. O clarão do lume batia em cheio na talha dourada e enchia depois a casa toda.
- É servida?
A Santa pareceu sorrir-lhe outra vez, e o menino também.E o Garrinchas, diante daquele acolhimento cada vez mais cordial, não esteve com meias medidas: entrou, dirigiu-se ao altar, pegou na imagem e trouxe-a para junto da fogueira.
- Consoamos aqui os três - disse, com a pureza e a ironia dum patriarca. - A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José"
Miguel Torga
Novos Contos da Montanha

- PAZ NA TERRA AOS HOMENS DE BOA VONTADE -
monge

8.12.07

Sexta-feira GRANDE

Ontem, foi assim ...

Programa (manhã)
- Sessão de abertura ... blá...blá...blá
- Apresentação da obra : "Património Imaterial do Douro: Narrações Orais" (Contos, Mitos e Lendas) Vol.I - Alexandre Parafita;
- Pausa para café (com produtos da terra ... divino);
- Palestra "Paisagem, Memória e Esquecimento" Joaquim Pais de Brito.
Magnifico - alguns resquícios:
" ... a paisagem resulta do nosso olhar, da nossa presença lá. A maneira como se olha é uma construção do olhar, dependente de nós e dela própria."
" ... a escrita cria imagens ... e temos de encontrar um cenário daquilo que estamos a ler"
" ... as memórias são construções sociais que organizam um conjunto de sinais e marcam um tempo enquanto narrativa, na qual existimos."
" ... às vezes os conflitos resolvem-se, esquecendo-os."
" ... os indivíduos precisam de marcar os lugares de que fazem parte."







Ala que se faz tarde

V Ciclo de Estudos de Miguel Torga:

"Contextualização sócio-económica da Região na obra de Miguel Torga, a evolução actual e a preparação para o contexto futuro"
Arquivo Distrital de Vila Real - 14:30

As comunicações apresentadas debruçaram-se somente sobre: "Cenários para 2030: Implicações para a região do Douro" e "Breves apontamentos sobre o Plano do Desenvolvimento Turístico do Vale do Douro" e "Breves apontamentos sobre o Plano do Desenvolvimento Turístico do vale do Douro".
Cenário pouco agradável. Neste ciclo faltou um dos comunicadores com "Torga e o Reino Maravilhoso - o abraço da Literatura a uma Economia em mudança". Talvez o que iria dizer alguma coisa sobre Torga.

Àrvore de Natal - discussão com o Pedro sobre se iamos armar ou montar a árvore de Natal. Decidimos que montar ficava melhor.

Pela noite ...




































Liberdade é um exercício difícil. Se houvesse possibilidade de salvar o mundo seria através da Poesia.

Miguel Torga.

basta uma porta de luz
para incendiar o poema
assim a urze do teu olhar
me entre na boca

António Cabral
monge

6.12.07

PortuGalizar

Antes de tudo, não se pretende aqui postar um artigo de opinião em que, o título associado à imagem possa trazer interpretações erróneas.
Pretende-se sim, encerrar este curto mas enriquecedor percurso cultural galego, dando relevo a uma interessante personalidade que também fez parte de todo o roteiro: Isaac Estraviz. Este professor Titular da Universidade de Vigo no campus de Ourense, na área da Didáctica da Língua e Literatura, possui três licenciaturas e um doutoramento em Filologia Galega é um acérrimo defensor do galego-português alegando para isso que, o castelhano, na Galiza, é um idioma intruso.
Este linguista, lexicólogo e "dicionarista" tem vindo a incidir a sua investigação tanto no território galego, como no território português, chegando à conclusão que muitos dos vocábulos são comuns a ambas as línguas, as quais, segundo deu a entender, lhe parece que o galego seja um português da Galiza, mais ou menos mesclado de castelhano.
Consciente das dificuldades que a língua galego-portuguesa enfrenta, Isaac Estraviz pretende editar o seu dicionário "de nove quilos" (por agora só Dicionário e-Estraviz) não desistindo por isso do seu contencioso com Madrid, que ao longo dos tempos parece ter vindo a pretender a aniquilar o português da língua galega.
Estas foram algumas das poucas impressões que nos ficaram deste persistente professor, do qual, agora, lamentamos não ter partilhado mais da sua companhia e erudição.
Ainda assim, sugere-se um saltinho aos principais movimentos que, na Galiza, lutam pela "independência" da sua língua em relação à "dominação castelhana":
MDL - Movimento da Defesa da Língua (http://www.mdl-gz.org/);
Agal - Associação Galega da Língua (http://www.agal-gz.org/);
Associação de Amizade Galiza-Portugal (http://www.lusografia.org/).

Obs.: Note-se que o "grafitti" da imagem está escrito em português, muito diferente do que seria se estivesse escrito em castelhano : Galicia no es España.

P.S.: Quando perguntei ao professor o que ele achava do facto de, nós portugueses, pretensiosos poliglotas, fazermos desmesurados esforços para tentar falar espanhol, redondamente respondeu ser isso um absoluto absurdo porque, a língua é a nossa identidade. Mais nada!

Mesmo no fecho deste post, demos um salto ao site da Agal e ainda hoje, constatamos: Pessoas de diferentes colectivos galegos constituem a Associação Pró-Academia Galega da Língua Portuguesa.

3.12.07

Anxo Rei

As palmas até poderiam ser estas!
Agora, a bola de carne, o pão cozido no forno ali ao lado, a chouriça assada, as castanhas assadas e um deslumbrante licor de café, tudo isto numa taverna com Anxo Rei a interpretar as músicas do seu álbum, tornou o serão inesquecível.

monge